O fim da “era tribal” da humanidade?

Na sua obra “Um mundo sem regras”Amin Mallouf fala da necessidade de o nosso século (XXI) ser o século onde finalmente tem fim o que chama da “história tribal da humanidade”.image.jpg

Um tempo marcado por conflitos, que se provam cada vez mais inúteis e destrutivos, seja qual for o seu resultado.

Devendo surgir um novo tempo, onde os únicos conflitos são os de cariz científico e ético.

Na sua obra “On War“, Clausewitz fala da guerra como “a continuação da política por outros meios”. Uma ideia com a qual concordo mas que não é totalmente correcta, isto porque, e utilizando outro livro (“Guerra” – de John Keegan – que trata também o tema do combate armado) como referência: a guerra precede os regimes políticos e a própria política.
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Já na pré-história existia conflito, na natureza também, um conflito que não reflecte a defesa de qualquer interesse ou ideologia, um conflito natural e instintivo por parte de todos os seres vivos.

Faço esta referência porque me parece impossível o que é idealizado por Maalouf, concordo plenamente com a ideia de um fim do conflito ideológico ou religioso, em que o combate passa apenas a ser científico e moral. Mas a verdade é que não existe nada que evidencie o fim desta “era tribal” da humanidade.

Porque este combate (ainda que errado), a necessidade que sentimos de defender ideologias ou religiões, não parece desaparecer, pode ausentar-se durante algum tempo, mas se a História nos provou algo é que eventualmente se repetirá.

Mas tal como a guerra não depende da existência da política, o combate científico e ético ou moral também não depende da ausência de guerra.

Como exemplo disso vemos a Guerra Fria (uma das épocas à qual o autor se refere na sua obra). Um período onde existiu sempre um combate militar indirecto (no Vietname, na Coreia ou no Afeganistão) entre os EUA e a URSS, e onde existiu também um combate científico e ético de forma simultânea.

A corrida ao espaço é uma das maiores evidências desta competição científica entre as duas2604615_orig.jpg super potências da época. Demonstrando a coexistência do combate armado (ou da ameaça de combate armado) com o combate científico, e até mesmo o impulsionamento dado pelo combate armado ao científico: a necessidade do desenvolvimento da tecnologia nuclear, por exemplo.

Maalouf fala ainda da “vitória enganosa” do ocidente nesta guerra fria.

Com a queda do muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética, parecia ter 09d756f5-2f5e-49c2-806d-dad7cafebeb6-2060x1236.jpegtriunfado o ideal de civilização ocidental ou europeu, no entanto o autor fala desta vitória com o início do declínio deste modelo civilizacional, afirmando que “(..
.) o ocidente não soube tirar proveito da sua vitória sobre o comunismo (…)”.

Como o triunfo do ocidente poderá ter precipitado a sua crise: “(…) o triunfo da Europa lhe tenha feito perder as suas referências (…)”.

“O Ocidente ganhou e impôs o seu modelo mas, precisamente devido à sua vitória, perdeu”.

Apresentando assim uma ideia um pouco paradoxal, onde o ideal de civilização europeu, ainda que sem “rival”, se destrói a ele próprio.
Mas uma ideia que não é errada, aproveito para dar outro exemplo onde a situação me parece ser a mesma: o modelo de economia de mercado, ou mesmo o capitalismo – um modelo económico que assenta na auto-regulação, mas que, através da sua actividade, se acaba por destruir a ele mesmo.
Porque esta falta de regulação leva sempre à necessidade de intervenção do Estado.

E o autor refere-se mesmo ao desregramento financeiro como um sintoma do desregramento da nossa “escala de valores”.

Mas não me parece que o triunfo do Ocidente tenha causado o seu declínio, talvez o tenha antecipado – e nesse sentido foi realmente uma vitória enganosa.

Com o final da Guerra Fria vimos o mundo mudar, a economia de mercado a expandir-se, a democracia a tornar-se quase obrigatória e a liberdade a ser constante (pelo menos no Ocidente).

No entanto o que me parece ser a causa deste declínio do Ocidente, é a falta de capacidade que este teve em adaptar-se ao mundo globalizado.brics-countries.png

Um mundo onde o Ocidente já não é a referência principal.

Vemos isso com a própria Europa, que viu a sua importância política diminuir imensamente no pós 2ª Guerra Mundial – exemplificado pela crise do Suez, também referida pelo autor, que aponta o Egipto como vencedor dessa crise. Talvez o tenha sido, mas mais importante destacar é a derrota da Europa, que cedeu às pressões Americanas e Soviéticas para acabar com o colonialismo europeu, e que aí entendeu que tinha acabado o seu domínio.

E como, posteriormente, os EUA procuraram “Preservar através da superioridade militar o que já não é possível preservar pela superioridade económica nem pela autoridade moral”.
Afirmando que “Os Estados Unidos são indubitavelmente os beneficiários deste desregramento (…) mas também são as vítimas”.

Maalouf refere também os conceitos de individualismo, e como devemos evitar que a globalização ceda o lugar à uniformização. Como o combate deixou de ser ideológico e passou a ser identitário.

No entanto, entre tantas críticas, Maalouf aponta quatro razões para ter esperança:

  • O progresso científico cada vez mais rápido;
  • A saída, por parte das nações mais populosas, do subdesenvolvimento (mas que trará certamente novos problemas a enfrentar por parte do Ocidente).
  • A forte experiência da Europa contemporânea (mas que é liderada por quem não a conhece ou não a compreende).
  • E a eleição de Obama em 2008 – o regresso de uma América esquecida, de Lincoln e Franklin Roosevelt (e acrescento JFK), agora irrelevante com a eleição de Trump.obamatrump2.jpg

Mas uma eleição que hoje representa também o regresso de uma América esquecida, não a América progressista, virada para o futuro e para a cooperação, mas a América do isolacionismo e não intervencionismo, uma América que através da eleição de Trump procura o regresso a um “passado glorioso”, mas que é precisamente passado. A procura do regresso ao domínio industrial americano, hoje impossível com a ascensão de indústrias na China e Índia.

E vemos este desejo de regresso ao passado em outros exemplos como o Brexit, onde se viu o desejo de muitos britânicos em regressar ao Reino Unido imperial, de certo modo afastado da Europa, mas que pertence também ao passado.

O próprio autor escreve: “Em vez de embelezar e idealizar o passado” é necessário olhar para o futuro.

Mas não devemos ver estes eleitores como os responsáveis do aparecimento de candidatos como Trump, apesar de não estarem isentos de “culpa”, a responsabilidade caí sobre aqueles que se esqueceram desta população, de um regime que não soube adaptar-se à globalização, e que ao fazê-lo de forma incorrecta, abandonou parte da sua população, que agora se faz ouvir.

(Mallouf fala ainda da importância de FDR e do seu New Deal na resolução da crise económica de 1929, comparável à de 2008, e de onde retiro a ideia de que existe a necessidade de um New New Deal, que permita através da intervenção do Estado a recuperação económica.)

E utilizando o exemplo de Trump, passo para um último conceito a que o autor se refere: a Legitimidade.
Afirma: “A legitimidade é o que permite aos povos (…) aceitarem (…) a autoridade (…)”. 

Uma noção que Mallouf considera indispensável quando se trata da noção de poder, mas que é cada vez mais esquecida. (Dando especial atenção ao exemplo do mundo árabe)morsi.jpg

Hoje vemos, e Trump exemplifica precisamente isso, um sentido de votação que se baseia apenas na confiança que os eleitores têm no próprio candidato, e não na concordância ou viabilidade da sua proposta. “Os remorsos e o pôr tudo em causa só vêm depois”.

Vemos a ascensão de políticos que utilizam “A falta de cultura como um exemplo de autenticidade”, e que se apresentam como outsiders do sistema que a população tem sido ensinada a detestar.

Mallouf afirma assim estarmos numa situação de crise moral, na qual a civilização vivemos enfrenta uma perda de referências e de sentido.

Afirmando que “não se trata de reencontrar mas de inventar“, uma afirmação com a qual não concordo plenamente, é verdade que a solução não é voltar ao passado, mas há casos, como a Europa, onde é necessário revisitar os valores presentes na sua fundação. Talvez não reencontrar, nem inventar, mas sim reinventar.

Concordo no entanto com a sua ideia de que “o objectivo mais crucial deste século” é a cultura, o ensino e o conhecimento (cada vez mais importante, e numa era em que a informação está cada vez mais acessível é essencial saber como a utilizar, permitindo-nos não só ter acesso ao conhecimento mas também reflectir sobre o mesmo).

“Não se trata apenas de estabelecer um novo modo de funcionamento económico e financeiro (…) trata-se também de conceber (…) uma visão totalmente diferente (…)”

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Fala de uma “Atitude tribal” que leva as nações, em tipo de crise, a fecharem-se sobre elas mesmas, a protegerem o pouco que têm, em vez de procurarem novamente a prosperidade através da colaboração e da solidariedade. Que é hoje tão evidente com a construção de muros na Áustria, Hungria, e agora até mesmo França.

“Teremos de inventar uma concepção do mundo que não seja apenas a tradução moderna dos nossos preconceitos ancestrais”.

Mas não me parece que esteja a chegar ao fim a “época tribal” da humanidade, ainda que o queira também, pelo contrário hoje vemos um regresso (em alguns aspectos) a certos períodos mais negativos desta época.

Mas devemos trabalhar para que os conflitos ideológicos, religiosos e entre nações sejam cada vez mais raros e desnecessários. 

E além das razões do autor (anteriormente mencionadas) para estar optimista, devemos também entender que existiram períodos negros durante toda a história, épocas durante as quais ditadores e populistas se aproveitaram do medo e descontentamento das populações para implementar regimes autoritários ou de repressão e que puseram em causa não só o progresso já alcançado, como mesmo os mais básicos direitos das populações.

Mas é durante estes períodos que surgem os grandes líderes, foi depois de Chamberlain que surgiu Churchill, depois de Hoover que surgiu Roosevelt, depois de Bush que surgiu Obama, e será depois Trump que surgirá um novo líder.

Terminando com uma famosa citação do próprio Winston Churchill:

“If you’re going through hell, keep going.”

 

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